sexta-feira, 14 de novembro de 2008

C - Manuel de Souza, o compadre e o cigano Anísio



Pra Manuel de Souza, que não sabia de Maquiavel.

No tempo em que o Riacho ainda tinha Água Nova, o exercício sem pudores de desdentar, medicar e distribuir "favores" nutria os redutos eleitorais.

Charlatão - dentista e médico - de primeira hora, sedutor por natureza e político por oportunidade, Manuel de Souza tinha na Água Nova o seu curral perfeito. Tanto, que foi decisiva sua participação para torná-lo o primeiro Prefeito eleito de Riacho de Santana.

Em noites insones, consumindo fumo e álcool em excesso nas bancas de pife-pafe, Manuel de Souza gabava-se de suas conquistas amorosas. Parecia obsessão.

Algumas de suas "conquistas" beiram o imaginário.

Contava que na Água Nova havia um casal alimentando dois sonhos. O segundo, tê-lo como compadre, parecia impossível, pois o primeiro dependia da prenhez da mulher, aparentemente estéril.

Aproveitando-se da situação, com a ajuda de um amigo e chefe político local, engendrou um meio de deitar com a designada comadre.

Não foi difícil convencer o compadre de persuadir a comadre a submeter-se a um tratamento. Qual homem não lutaria para embuchar sua mulher? Ademais, pros quintos os mexericos sobre o seu vigor em face da infecundidade da comadre.

Compadres convencidos, tratamento prescrito: à boquinha da noite, ingerir uma meizinha, verdadeira mandrágora, obtida na capital graças ao seu mentor político Dr. Zé Fernandes.

Passo seguinte: recolher-se em um quarto escuro e, passado da meia-noite, casalar. Na primeira não frutificava. A partir de então, como testemunhara em mais de dúzia de vezes, era tiro e queda.

Um senão: o homem que deitasse com a mulher logo em seguida ficaria maninho.

Mesmo por tão nobre causa, qual homem se sacrificaria?

Depois de horas de discussão, pimba!

- Por que não um cigano? Quando vinha, ví um bando deles arranchado no Carnaubal.

- E o cigano vai topar?

- Com dinheiro e um bom papo, compadre...

Alegações pra cá, argumentos pra lá, a comadre anuiu.

Ainda naquela noite, bastava que Manuel de Souza convencesse o cigano, consumar-se-ia o tratamento. Para não se constranger, o compadre ficaria de fora.

Compadres pra casa, Manuel de Souza pro Carnaubal.

Antes das quatro, Manuel de Souza passou na casa dos compadres e confirmou a consignação da vítima.

- Foi fácil. Alguns trocados e ainda obtive a garantia de cedinho o bando ir embora. O nome dele é Anísio.

- Não preciso saber o nome do infeliz.

Nesse ponto, a ajuda providencial do amigo e chefe político local. Sem saber o porquê, foi incumbido de passar a noite em Pau dos Ferros no puteiro de Celsa em companhia do compadre e à custa do erário.

Meia-noite, enquanto Água Nova dormia, Manuel de Souza, travestido de cigano, adentrou à casa da comadre. Se pelos fundos ou pela frente, não há registro.

Já se se encostava as sete do dia seguinte quando, sereno, com o hálito seco e mal cheiroso dos ressacados, o compadre, acabado de chegar, observava a procissão de ciganos que passava.

De inoportuno? Uma irritante coceira em sua fronte.

C - Três histórias de Expedito



....e uma de um estrangeiro.


Para o Juiz de Pontevedra, que não me deixa mentir.


PREVENÇÃO DE ACIDENTES

Absorto, Expedito, escorado com o ombro na parede, olhava pra aquele pedaço de pau fincado na fachada de sua venda.

Com a freguesia aumentando, acabara de contratar a repintara de sua mercearia. Pensava até em abrir um letreiro com os dizeres MERCEARIA QUINTAS. Logo abaixo, para identificar seu dono, complementaria: UMA ORGANIZAÇÃO EXPEDITO FERNANDES.

Quem diabos enfiara aquela travessa de madeira de quase meio metro de cumprimento a mais de três de altura? E pra que aqueles duas rodinha de louça fincada na travessa?

Paulo Cajé, morador de frente, e observador-mor da rua, lendo, nas rugas da testa, as angustias do vizinho, falou:

- É de antes da chegada de Paulo Afonso. Os fios corriam por esses paus.

Expedito nem respondeu. Sem fechar a venda saiu apressado para minutos depois voltar com uma escada no ombro e um serrote na mão.

Com o cuidado necessário, escorou a escada no barrote de madeira e subiu os três primeiros degraus. Para prevenir-se, com uns balanços de corpo forçou bastante pra ver se o conjunto suportava seu peso. Confiante, galgou os dezesseis degraus restantes e necessários para alcançar o conjunto travessa-isoladores que no passado funcionara como equipamento de distribuição de energia.

Lá em cima, segurando com a mão esquerda a ponta do travessão, com a mão direita serrou lentamente o barrote de miolo de pau d’arco até que este, não suportando o esforço do peso do serrador incidental, partiu-se fazendo voar de quase quatro metros de altura, barrote, escada, serrote, isolador de porcelana e Expedito.

Paulo Cajé, observador-mor daquele pedaço de rua, não observou, socorreu.
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DESVIO DE SEPTO


Refeito do imprevisto vôo - no episódio em que serrou uma travessa de madeira que servia de escora da escada em que havia trepado - mercearia com pintura nova, freguesia crescente e inverno pegado, a preocupação atual de Expedito voltava-se exclusivamente para as lagartas que teimavam em destruir a plantação de milho feita no quintal de sua casa.

Galego de Cosma, seu vizinho, deu a receita: - pulverize as plantas mirando o miolo daquele enrolado de folhas que se forma pra sair o pendão.

Pra não tardar o tratamento, o mesmo vizinho emprestou o remédio: um tubinho, parecendo os vidrinhos de injeção, contendo veneno em dose concentrada que deveria ser diluída antes da aplicação.

Expedito escutava atento às lições do amigo enquanto aspirava um descongestionante nasal que sempre usava para suportar uma renite crônica causada por um desvio de septo. Chovesse ou fizesse sol o tubinho de remédio não faltava no bolso detrás de sua calça. Foi não veio, uma gotinha em cada buraco do nariz, seguido de duas fungadinhas pra absorver o medicamento, e estava pronto pra outra.

De posse da máquina de pulverizar, diluído parte do veneno, guardado no atajé, onde sempre guardava suas quinquilharias, o que sobrou de veneno do tubinho que mais parecia um vidrinho de injeção, lá se foi Expedito dá cabo de sua indesejada criação de lagartas.

Como o vizinho ensinara, aplicava o veneno na parte mais alta do pé de milho, na saída do pendão. A cada carreira percorrida, aspergia umas gotinhas do descongestionante nasal, duas fungadinha e ia em frente. Mais uma carreira de plantação, mais umas gotinhas nas narinas, duas fungadinhas...

Lá pras tantas, Expedito ao terminar mais uma carreira de milho, pegou o tubinho de remédio no bolso da bunda, onde sempre portava, aspergiu umas gotinhas no pé de milho, mirou o chuveirinho da mangueira pra suas ventas e, com a mão esquerda, bombeou forte a máquina de veneno.

Não houve tempo pras duas fungadinhas antes do desmaio.
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RÁDIO E CÚBITO


Desintoxicado do veneno acidentalmente inoculado, tendo que agüentar as latumias da mulher no pé do ouvido por suas desastradas incursões, Expedito dedicava todas as suas horas a dura rotina do ir e vir de casa pra mercearia, da mercearia pra casa.

A monotonia foi quebrada pela notícia da pouca saúde de um bezerro de sua não tão próspera criação.

Consultado um veterinário a medicação foi prescrita: três injeções em dias seguidos pra espantar o mal que afligia o pequeno garrote. A primeira delas foi aplicada pelo próprio veterinário que, prestativo, ofereceu-se pra administrar o remédio nos outros dias.

- Não precisa, sei aplicar as injeções. Não será essa a primeira vez – ponderou Expedito.

Em casa, obedecendo às instruções do veterinário, guardou em local ventilado e iluminado, os dois vidrinhos de injeção que, como não poderia deixar de ser, pareciam com vidrinhos de injeção.

Na manhã seguinte, logo cedinho, Expedito Fernandes pegou em seu atajé, onde sempre guardava suas quinquilharias, a seringa de aplicar injeção em gado, um dos vidrinhos deixados pelo veterinário e foi até curral administrar no bezerro doente a dose recomendada.

Não era nem onze horas quando seu filho chegou à porta da mercearia e noticiou:

- Pai, o garrote morreu.

- Como morreu? Tomou duas injeções e mesmo assim morreu?

- Só tomou uma, pai. Os dois vidrinhos de injeção que o veterinário deixou e que parecem com aquele tubinho de veneno que Galego de Cosma lhe deu, ainda tão lá no atajé.

Emocionalmente descontrolado, Expedito Fernandes esmurrou o balcão com tanta força que resultou em dupla fratura no seu antebraço direito - rádio e cúbito.
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QUE SE FAÇA JUSTIÇA.


O Juiz da 1ª Vara Cívil de Pontevedra, capital da província de mesmo nome na Espanha, recebeu da parte autora as explicações à um pedido de informações adicionais feito pela demandada - uma companhia seguradora - que, em contestação numa ação indenizatória, questionou a natureza das lesões sofridas e declaradas em Juízo por aquele.

Veja-se:

Excelentíssimos Senhores.
Em resposta ao seu pedido de informações adicionais declaro:

No item n° 1, sobre minha participação nos acontecimentos, mencionei: "tentando executar a tarefa e sem ajuda" como a causa de meu acidente.

Pedem-me em sua carta que dê uma explicação mais detalhada, por isso espero que o que segue esclareça de uma vez por todas suas dúvidas.

Sou pedreiro há dez anos. No dia do acidente estava trabalhando, sem ajuda, colocando tijolos em uma parede do sexto andar do edifício em construção nesta cidade.

Finalizadas as minhas tarefas, verifiquei que haviam sobrado aproximadamente 250 quilogramas de tijolos. Em vez de carregá-los até a planta baixa com as mãos, decidi colocá-los num barril, e baixá-los com ajuda de uma roldana que felizmente se achava fixada a uma viga no teto do sexto andar.

Desci até o térreo e atei o barril com uma corda e com ajuda da roldana icei-o até o sexto andar, e em seguida amarrei a corda a uma das colunas do edifício.

Subi então até o sexto andar e coloquei os tijolos no barril.

Voltei ao térreo, desatei a corda e a agarrei com força, de modo que os 250 quilogramas de tijolos baixassem suavemente (devo indicar que no primeiro item da minha declaração à polícia, indiquei que meu peso corporal era de oitenta quilogramas).

De repente, os meus pés saíram do chão, e comecei a subir rapidamente arrastado pela corda. Devido ao susto que levei, perdi minha presença de espírito e irrefletidamente me aferrei mais ainda a corda, enquanto subia a grande velocidade. Nas proximidades do terceiro andar encontrei com o barril que baixava a uma velocidade próxima a da minha subida, e foi impossível evitar o choque.

Acredito que ali se produziu a fratura de crânio.

Continuei subindo até que os meus dedos se engancharam dentro da roldana, o que provocou a interrupção da minha subida, e também as múltiplas fraturas dos dedos e do pulso.

A esta altura (dos acontecimentos) já tinha recuperado minha presença de espírito, e apesar das dores continuei agarrado na corda. Foi nesse instante que o barril se chocou contra o chão, o fundo do mesmo se partiu e todos os tijolos se esparramaram. Sem a carga, o barril pesava aproximadamente 25 quilogramas. Devido a um princípio físico muito simples comecei a descer rapidamente para o térreo.

Aproximadamente ao passar pelo terceiro andar encontrei com o barril vazio subindo, tenho quase certeza de que, no choque que sobreveio, produziram-se as fraturas dos tornozelos e do nariz. Este choque felizmente diminuiu a velocidade da minha queda de maneira que, quando aterrissei em cima da montanha de tijolos, só quebrei três vértebras.

Lamento, entretanto, informar que quando me encontrava deitado em cima dos tijolos com dores insuportáveis e sem poder me mover, e vendo em cima de mim o barril, perdi novamente minha presença de espírito e soltei a corda. Devido a que o barril pesava mais do que a corda, desceu rapidamente e caiu em cima das minhas pernas quebrando as duas tíbias.

Esperando ter esclarecido definitivamente as causas e o desenvolvimento dos acontecimentos me despeço atentamente.

Espero que se faça Justiça.



quarta-feira, 5 de novembro de 2008

C - Rêgos versus Fernandes.



Pau dos Ferros, novembro de 1873.

Meu caro Bento Tremelique


Só agora consegui o seu endereço, graças a uma terceira pessoa conhecedora das correspondências entre você e o Pe. Zé Paulino.

Olha, já se passaram mais de dez anos desde aqueles acontecimentos desagradáveis entre você e os Rêgos[1] e neste ínterim, muita coisa mudou e muito aconteceu nesta, agora Vila, Pau dos Ferros de meu Deus. Ou não será dos Fernandes? Quiçá, dos Rêgos? Pois nesta seara, meu bom Tremelique, não mudou nada. Desde a emancipação de Portalegre, em 1856, amparados pelas facções Conservadores e Liberais, eles se alternam no mando.

Uma vergonha, meu caro Tremelique. Vou te expor à vagar.

Primeiro, em 1864 a Câmara foi multada pelo Presidente da Província por não promover as sessões legislativas. A única alegação oferecida pela casa foi a de que seu presidente, Manuel Pereira Leite, encontrava-se foragido da Polícia.

Já no ano passado, nas eleições para Câmara, o caldo esquentou.

Marcada para o primeiro domingo de outubro, se passaram quinze dias sem que nenhum voto fosse tomado.
Não por falta de eleitores, mas porque os Rêgos e os Fernandes não chegavam a um acordo sobre onde instalar a Junta de votação.

Na falta de ajuste, os Rêgos se puseram na dianteira e montaram uma Junta na Matriz de Nossa Senhora da Conceição.

Logo no início, os Fernandes protestaram de irregularidades da mesa. E com razão: o Presidente era apenas 3º Juiz de Paz, e os outros membros, Florêncio do Rego Leite, seu desafeto, e Vicente José de Queiroz não estavam qualificados como eleitores.

A discussão descambou em rixa.

Dentro da Junta Paroquial a maior pancadaria, do lado de fora, na lateral da Igreja, os opositores se enfrentaram às pedradas. Os prejuízos à padroeira, dentro e fora da Matriz, foram imensos.

Sobrados vários feridos, acalmado um pouco, os Rêgos, montaram um cerco armado à Igreja Matriz, só deixando entrar os seus eleitores.

Inconformados, os Fernandes montaram uma outra Junta de votação na Casa da Câmara sobre a presidência do 1º Juiz de Paz, Childerico José Fernandes. Já os Regos, foram terminar a eleição à noite, no Sítio Logradouro, onde, se diz à língua solta, que utilizaram um chapéu como urna.

Em 16 de novembro, a Câmara apreciou o resultado das duas juntas e em sessão presidida pelo Dr. Hemetério Raposo de Melo, por unanimidade de votos, reconheceu a eleição realizada na Casa da Câmara e anulou a eleição realizada na Junta Paroquial.

Em seguida foram diplomados os Vereadores, Ten. Cel Epifânio José de Queiroz, Alferes José Alexandre da Costa Nunes, Manoel Francisco do Nascimento Souza, Manoel Queiroz de Oliveira e Pedro Lopes Cardoso.

Mas não se engane que as coisas morreriam aí.

Os Rêgos recorreram à instância superior e, em 21 de dezembro, o Presidente da Província, por fundamentos não conhecidos, anulou a eleição da Casa da Câmara e deu validade a ocorrida na Igreja Matriz.

Com a mudança, tornaram-se novos Vereadores, Galdino Procópio do Rêgo, João Bernardino da Costa Maya, Noberto do Rêgo Leite, Florêncio do Rêgo Leite (que você conhece muito bem e que nem qualificado como eleitor estava) e João Afonso Batalha.

Apesar do controverso, as coisas continuaram desse jeito até recentemente, quando em 27 de outubro próximo passado, por aviso, o Governo Imperial reconheceu a eleição promovida pela Junta Paroquial.

Bom, meu caro Tremelique, resta-nos esperar que um dia esse país mude, quem sabe se instale uma República e fatos lamentáveis como esses não se repitam.

Mais ainda, que a lateral da Igreja de Nossa Senhora da Conceição não sirva para que eleitores apaixonados se digladiem e, caso se encontrem naquele local quase santo, que batalhem apenas com bandeiras e não como na eleição das pedras.

Do amigo fraterno.

Zé das Cangalhas.
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[1] Pra saber dos acontecimentos, leia “O tresloucado amor de Bento Tremelique”.

D - Apontamentos sobre a não-cumulatividade


Apontamentos sobre a não-cumulatividade do ICMS

Por José Sávio Lopes(*)

1 INTRODUÇÃO

O princípio da não-cumulatividade é encontrado em alguns tributos previstos em nosso ordenamento e tem estrita relação com o interesse do estado em não onerar a atividade econômica. Antes restrito aos impostos sobre circulação de mercadorias e sobre produtos industrializados teve sua utilização ampliada a outros tributos. Recentemente a Lei 10.637 de 30 de dezembro de 2002 instituiu o regime não-cumulativo de apuração das contribuições ao PIS e a COFINS.

Não obstante o assunto já ter sido exaustivamente debatido em doutrina, neste trabalho pretende-se apresentar alguns apontamentos sobre a aplicação do principio da não-cumulatividade ao ICMS. Não se pretende inovar, apenas trazer a lume alguns pontos que, pela importância, nunca será demais discuti-los.

2 BREVE HISTÓRICO

Até 1965, com o advento da Emenda Constitucional de nº 18 (à Constituição de 1946), a não-cumulatividade de impostos não era ventilada no sistema jurídico tributário de nosso país. A Emenda de nº 18 alterou aquela Constituição e minorou a alta regressividade causada pela incidência cumulativa dos impostos incidentes sobre os produtos de consumo, com prejuízos inestimáveis à sociedade. Na época, a nova diretriz aplicava-se expressamente ao Imposto sobre Produtos Industrializados – IPI e ao antigo Imposto sobre Circulação de Mercadorias – ICM que substituiu o Imposto sobre Venda e Consignação. Desde então, a não-cumulatividade passa a ser regra para esses dois impostos independentes das alterações que viriam a sofrer.

Nascido na França nos anos cinqüenta, não decorrente de um imposto sobre vendas mercantis, mas agregado a um imposto sobre produção [i], a não-cumulatividade parecia ter por objetivo simplificar a legislação e reduzir o ônus imposto à atividade econômica.

A Constituição de 1967 dava competência tributária aos Estados e ao Distrito Federal para instituir impostos sobre operações relativas à circulação de mercadorias, inclusive lubrificantes e combustíveis líquidos (Art. 24, II), ao mesmo tempo em que à União competia decretar impostos sobre serviços de transporte e comunicações, salvo os de natureza estritamente municipal; sobre produção, importação, circulação, distribuição ou consumo de lubrificantes e combustíveis líquidos e gasosos; sobre a produção, importação, distribuição ou consumo de energia elétrica e; extração, circulação, distribuição ou consumo de minerais do País (Art. 22, incisos VI a IX).

Em 1988 a nova Constituição reuniu todas essas hipóteses de incidência tributária em um só imposto de competência dos Estados e Distrito Federal, designando-o de Imposto sobre operações relativas à circulação de mercadorias e sobre transportes interestaduais e intermunicipais e de comunicação - ICMS.

A doutrina discorda quanto à quantidade de impostos que contém a sigla ICMS. Para Roque Carrazza o ICMS comporta cinco impostos: imposto relativo à circulação de mercadorias; imposto sobre serviços de transportes interestadual e intermunicipal; imposto sobre serviços de comunicação; imposto sobre produção, importação, circulação, distribuição ou consumo de lubrificantes líquidos e gasosos e de energia elétrica; imposto sobre extração, circulação, distribuição ou consumo de minerais[ii]. Por outro lado, entende José Eduardo Soares de Melo[iii] que o ICMS configura apenas três impostos: sobre operações relativas à circulação de mercadoria (antigo ICM); sobre as prestações de serviços de transportes interestaduais e intermunicipais e; sobre a prestação de serviços de comunicação. Consubstancia seu argumento no fato de que ao unir impostos de competências originárias diferentes, o constituinte incorporou à competência do Estado coisas de mesma natureza. Bens como energia elétrica, combustíveis, lubrificantes e minerais tratam-se de produtos que, por opção legislativa, estavam fora do âmbito de incidência do imposto estadual, mas, que não passam de mercadorias como outra qualquer.

3 SIGNIFICADO DA NÃO-CUMULATIVIDADE

A expressão não-cumulatividade do tributo é equívoca. Tanto pode ser entendida como o impedimento à incidência de vários tributos sobre um mesmo fato quanto à limitação de tributação a um único fato, em uma sucessão de fatos de mesma natureza. Hugo de Brito Machado define a não-cumulatividade de impostos como sendo

“... a qualidade do imposto e o princípio segundo o qual em cada operação o
contribuinte deduz do valor do imposto correspondente à saída dos produtos o
valor que incidiu na operação anterior, de sorte que reste tributado
somente o valor acrescido. Em outras palavras, do valor do imposto que incidiu
nas operações anteriores sobre os respectivos insumos[iv]."
Discute-se também se a não-cumulatividade constitui-se de técnica ou se é um principio de direito.

Deixando-se a largo a questão filosófica da distinção entre princípio e limite objetivo, a melhor interpretação será aquela em que se atina para o contexto em que se apresente. Ao se tratar da maneira especial como se executa, ou seja, do regime jurídico em que se insere a não-cumulatividade, está-se falando de técnica, já da forma que se apresenta como enunciado prescritivo na Constituição e mesmo em Leis específicas, está-se referindo a princípio.

4 CONTEXTUALIZAÇÃO DA NÃO-CUMULATIVIDADE

A não-cumulatividade do ICMS está inserto no inciso I do § 2º do artigo 155 da Constituição Federal.

Art. 155. Compete aos Estados e ao Distrito Federal instituir impostos sobre:
(...)
II - operações relativas à circulação de mercadorias e sobre prestações de serviços de transporte interestadual e intermunicipal e de comunicação, ainda que as operações e as prestações se iniciem no exterior;
(...)
§ 2.º O imposto previsto no inciso II atenderá ao seguinte:
I - será não-cumulativo, compensando-se o que for devido em cada operação relativa à circulação de mercadorias ou prestação de serviços com o montante cobrado nas anteriores pelo mesmo ou outro Estado ou pelo Distrito Federal;
II – a isenção ou não-incidência, salvo determinação em contrário da legislação:
a - não implicará crédito para compensação com o montante devido nas operações ou prestações seguintes;
b - acarretará anulação do crédito relativo às operações anteriores.


É difícil contestar que o legislador constituinte foi minucioso ao disciplinar o ICMS. Não só determinou a competência, como também fixou o fato gerador, estabeleceu a regra da não-cumulatividade, e, desde já, as exceções a esta regra (alíneas a e b). Sem nenhuma dúvida, norma constitucional (princípio ou limite objetivo não importa a designação que se possa dar), de eficácia plena.

De extrema importância entender que a hipótese de incidência para o ICMS é a realização da operação de circulação de mercadoria e não a circulação de mercadoria. Essa distinção é sutil mas necessária. Paulo de Barros Carvalho informa que
“... o vocábulo operações, no contexto, exprime o sentido de atos ou negócios jurídicos hábeis para provocar a circulação de mercadorias. Adquire, neste momento, a acepção de toda e qualquer atividade, regulada pelo Direito, e que tenha a virtude de realizar aquele evento".
(...)
"são aqueles atos ou negócios jurídicos celebrados entre pessoas e que tem os predicados de consumar os efeitos próprios à circulação de mercadorias[v].”

O ato de promover a operação de circulação de mercadoria é voluntário e praticado por sujeito designado em lei, excluindo, portanto, da incidência os atos ilícitos tais como o furto e o roubo.

O termo circulação, no contexto, não tem o sentido usual de movimentação e sim de tradição, de mudança de titular, mudança de patrimônio. Somente esse sentido jurídico de circulação é o que interessa para o preceptivo.

5 NÃO-CUMULATIVIDADE E AS CLÁUSULAS PÉTREAS

A não-cumulatividade é princípio característico dos imposto ICMS e IPI. Ao primeiro, porém, a própria Constituição impôs restrições (art. 155, § 2º, a e b) ao creditamento de certas operações.
§ 2.º O imposto previsto no inciso II atenderá ao seguinte:
...
II - a isenção ou não-incidência, salvo determinação em contrário da legislação:
a) não implicará crédito para compensação com o montante devido nas operações ou prestações seguintes;
b) acarretará a anulação do crédito relativo às operações anteriores;

Não faltou quem afirmasse que as mesmas restrições constitucionais impostas ao ICMS também se aplicavam ao IPI. Impossível. Assim como, também impossível, que o constituinte derivado venha por intermédio de emenda à Constituição fazer restrições ao IPI. As normas em questão, como dito acima, são cláusulas pétreas e conforme o art 60, § 4º da Constituição Federal não podem ser alteradas.

Exsurge as perguntas: como e por que as restrições de creditamento encontradas no ICMS? Os Estados da Federação na ânsia desmesurada de captar investimento se sujeitam a uma verdadeira guerra fiscal. Em 1983 com o fito de evitar ou minorar tal disputa, entre os Estados, a Emenda Constitucional de nº 23 introduziu tais limites ao ICMS. E a questão das cláusulas pétreas? A Constituição anterior não previa tal de garantia ao cidadão, apenas a abolição da Federação ou da República não podia ser objeto de deliberação de emenda constitucional (CF1967,Art 50, § 1º). Com o advento da Constituição de 1988, o constituinte apenas manteve tais limites.

6 LEGISLAÇÃO REGULAMENTADORA DO ICMS

Promulgada a Constituição de 1988, manteve-se em vigor a legislação tributária relativa à Constituição de 1967, com redação dada pela Emenda de nº 1 de 1969 e pelas posteriores. O Sistema Tributário Nacional vigeria cinco meses depois (ADCT, 34, caput), assegurando a aplicação da legislação anterior (Decreto Lei 406/68 e Lei Complementar 44/87), no que não fosse incompatível com ele e com a nova legislação editada pela União, Estados e Municípios e Distrito Federal (ADCT, 24, § 5º).

Perguntava-se à época: seria o ICMS um novo tributo ou apenas teria o ICM acumulado novas figuras? Numa análise menos acurada, poder-se-ia não relevar tal distinção. Ocorre, porém, que se fosse considerado o ICMS um novo tributo, a entrada em vigor do novo Sistema Tributário Nacional tornaria ineficaz a legislação anterior pertinente. Entendendo-se o contrário, apenas a parte acrescida ao ICM careceria de nova regulamentação.

Como era de se esperar, a regulamentação do imposto não foi editada no prazo previsto de 60 dias da promulgação da Constituição. Assim sendo, com base no § 8º art. 34 da ADCT, firmou-se o Convênio ICM de nº 66/88 que regularia a nova matéria concomitante com o Decreto Lei 406/88 até 13 de setembro de 1996 quando foi publicada a Lei complementar 87/96 que passaria a tratar integralmente do ICMS. Ou seja, até setembro de 1996 regia o Imposto sobre Operações Relativa à Circulação de Mercadorias e sobre Prestação de Serviços de Transportes Interestadual e Intermunicipal e de Comunicação o Decreto Lei 406/88 e o Convênio ICM 66/88.

Com a intenção de promover uma reforma tributária cujo objetivo principal era excluir a incidência do ICMS sobre qualquer tipo de exportação, em 13 de setembro de 1996 foi editada a Lei Complementar de nº 87. A referida Lei, na realidade, prestou-se a cumprir o estabelecido no inciso II do artigo 146 e inciso XII do § 2º do art. 155, ambos da Constituição Federal, passando então a partir daquela data a ser a legislação básica do imposto em todos os Estados da Federação e Distrito Federal.

7 COMPENSAÇÃO OU ABATIMENTO

O ICMS é não-cumulativo, “compensando-se” o que for devido em cada operação com o montante cobrado nas anteriores (CF, 155, § 2º, I).

A compensação a que se refere o preceptivo acima citado é termo, pela própria natureza das palavras, não uníssono. Relacionado com o ICMS, o termo compensação, além do § 2º do art. 155 da Constituição Federal, encontra-se, ainda, no Código Tributário Nacional no inciso II do art. 156, devendo ser lido em combinação com o art. 170.
Art. 156. Extinguem o crédito tributário:
...
II - a compensação
...
Art. 170. A lei pode, nas condições e sob as garantias que estipular, ou cuja estipulação em cada caso atribuir à autoridade administrativa, autorizar a compensação de créditos tributários com créditos líquidos e certos, vencidos ou vincendos, do sujeito passivo contra a Fazenda pública.

Muito se tem discutido a respeito da compensação no âmbito do Direito Tributário, mormente sobre a sua consonância com a compensação de que trata o Código Civil.
Art. 368. Se duas pessoas forem ao mesmo tempo credor e devedor uma da
outra, as duas obrigações extinguem-se, até onde se compensarem.
Art. 369. A compensação efetua-se entre dívidas líquidas, vencidas e de coisas
fungíveis.

A compensação, no Direito Civil, é o fenômeno de extinção das obrigações que ocorre quando duas pessoas são mutuamente credoras e devedoras uma da outra[vi].

A compensação inserta no inciso I do § 2º do art. 155 não tem o mesmo sentido dado no Código Civil, tampouco com a do artigo 156, II do Código Tributário Nacional. Falta àquela, além da concomitância de obrigações, as dívidas vencidas. Não se pode falar também em débitos mútuos, pois os anteriores foram extintos pelo pagamento efetuado pelo contribuinte respectivo[vii].

A Constituição de 67 utilizava “abater” ao invés de “compensar”, palavra mais idônea para exprimir a operação:
Art 24 - Compete aos Estados e ao Distrito Federal decretar impostos sobre:
II - operações relativas à circulação de mercadorias, inclusive lubrificantes e combustíveis líquidos, na forma do art. 22, § 6º, realizadas por produtores, industriais e comerciantes.
...
§ 5º - O imposto sobre circulação de mercadorias é não-cumulativo, abatendo-se, em cada operação, nos termos do disposto em lei, o montante cobrado nas anteriores, pelo mesmo ou outro Estado, e não incidirá sobre produtos industrializados e outros que a lei determinar, destinados ao exterior. (grifo nosso).

8 O QUE ABATER OU COMPENSAR

Outra dificuldade instalada é definir quais os montantes que entrarão na operação de confronto dos créditos. Inúmeras normas, de índole infraconstitucional, editadas pelos Estados dificultam identificar quais as operações relativas à circulação de mercadorias e prestação de serviços que podem ser creditadas.

A Constituição Federal autorizou o legislador infraconstitucional a regrar os procedimentos adotados para aplicação do abatimento dos créditos.
Art. 155. Compete aos Estados e ao Distrito Federal instituir impostos sobre
...
II - operações relativas à circulação de mercadorias e sobre prestações de serviços de transporte interestadual e intermunicipal e de comunicação, ainda que as operações e as prestações se iniciem no exterior;
....
§ 2.º O imposto previsto no inciso II atenderá ao seguinte:
I - será não-cumulativo, compensando-se o que for devido em cada operação relativa à circulação de mercadorias ou prestação de serviços com o montante cobrado nas anteriores pelo mesmo ou outro Estado ou pelo Distrito Federal;
...
XII - cabe à lei complementar:
...
c) disciplinar o regime de compensação do imposto; (grifos nosso)

Malgrado a clareza do preceito constitucional acima, o legislador ordinário, desconsiderando que o constituinte jamais lhes outorgou competência para restringir hipóteses de creditamento, ao editar a Lei Complementar de nº 87/96, que regula o ICMS, jogou em nosso ordenamento um sem-número de regras sobre a aplicação da não-cumulatividade que não passam pelo crivo da constitucionalidade.

O âmbito deste trabalho limita-se a anotar o contra-senso da restrição referente às mercadorias de uso e consumo do estabelecimento do contribuinte.

Art. 19. O imposto é não-cumulativo, compensando-se o que for devido em cada operação relativa à circulação de mercadorias ou prestação de serviços de transporte interestadual e intermunicipal e de comunicação com o montante cobrado nas anteriores pelo mesmo ou por outro Estado.
Art. 20. Para a compensação a que se refere o artigo anterior, é assegurado ao sujeito passivo o direito de creditar-se do imposto anteriormente cobrado em operações de que tenha resultado a entrada de mercadoria, real ou simbólica, no estabelecimento, inclusive a destinada ao seu uso ou consumo ou ao ativo permanente, ou o recebimento de serviços de transporte interestadual e intermunicipal ou de comunicação.
...
Art. 33. Na aplicação do art. 20 observar-se-á o seguinte:

I – somente darão direito de crédito as mercadorias destinadas ao uso ou consumo do estabelecimento, nele entradas a partir de 1º de janeiro de 2007;

II – somente dará direito a crédito a entrada de energia elétrica no estabelecimento:
a) quando for objeto de operação de saída de energia elétrica;
b) quando consumida no processo de industrialização;
c) quando seu consumo resultar em operação de saída ou prestação para o exterior, na proporção destas sobre as saídas ou prestações totais;

e d) a partir de 1º de janeiro de 2007, nas demais hipóteses;
III - somente darão direito de crédito as mercadorias destinadas ao ativo permanente do estabelecimento, nele entradas a partir da data da entrada desta Lei Complementar em vigor.
IV – somente dará direito a crédito o recebimento de serviços de comunicação
utilizados pelo estabelecimento:
a) ao qual tenham sido prestados na execução de serviços da mesma natureza;
b) quando sua utilização resultar em operação de saída ou prestação para o exterior, na proporção desta sobre as saídas ou prestações totais; e
c) a partir de 1o de janeiro de 2007, nas demais hipóteses.

Veja-se o conflito existente entre os artigo 20 e 33. Este é típico de inserções feitas no processo legislativo quando pessoas ou entidades impõem sua sanha arrecadatória traspassando todos os limites constitucionais. O principio da não-cumulatividade é norma de eficácia plena, não carecendo de nenhuma outra norma para sua aplicação. A competência outorgada na Constituição (art. 155, § 2º, XII, c) ao legislador ordinário foi para disciplinar o regime do imposto, jamais opor qualquer restrição ao crédito.

Ao se editar a Lei Complementar de nº 87/96 a restrição prevista no inciso I vigeria somente até 1º de janeiro de 1988. Posteriormente, nova Lei Complementar (LCP 99/99 de 20 de dezembro de 1999) prorroga a data para 1º de janeiro de 2003 e em 16 de dezembro de 2000 a Lei Complementar de nº 114/2000 leva o direito de crédito para 1º de janeiro de 2007.

No que concerne à energia elétrica, em 11 de agosto de 2000 a Lei Complementar 112/2000 criou as restrições das letras de a `a c do inciso II do art. 33.

Os serviços de comunicações nasceram sem restrições, mas a mesma Lei Complementar que penalizou os créditos à energia elétrica criou as restrições que hoje vigoram pelo inciso IV, letras a à c.

Não será nenhuma surpresa para o contribuinte quando em um futuro próximo ao aproximar-se o termo final das restrições acima novas medidas sejam editadas estendendo ainda mais as limitações de crédito do regime não-cumulativo do ICMS.

Não se há de ter nenhuma dúvida ao afirmar que todas essas limitações são frontalmente inconstitucionais. As únicas limitações impostas ao principio da não-cumulatividade aplicadas ao ICMS já estão exaustivamente delineadas no inciso II do § 2º do artigo 155 da Constituição. Não só estas como qualquer outra restrição que se faça ao direito do contribuinte de se creditar de impostos pagos anteriormente em operações de circulação de mercadoria, prestações de serviços de transporte interestadual e intermunicipal e de comunicação estarão contaminadas do vicio de inconstitucionalidade.

9 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Dos apontamentos acima, poderíamos resumir que a não-cumulatividade somente aportou em nosso ordenamento em 1965.

É principio constitucional de eficácia plena, desnecessária, portanto, da edição de qualquer outra norma para sua aplicação.

Regula a não-cumulatividade a Lei Complementar de nº 87/96 editada em 13 de setembro de 1996 e até esta data regia a matéria concomitantemente o Decreto Lei 406/88 e o Convênio ICM 66/88.

A competência outorgada ao legislador ordinário não lhe permitia criar limitações além das já especificadas no texto da Lei maior, desta forma as restrições impostas ao contribuinte ao direito de creditamento do ICMS relativos a mercadorias, energia elétrica e serviços de comunicações insertas no artigo 33 da Lei Complementar 87/96 são manifestamente inconstitucionais.
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BORGES, José Souto, Teoria geral da isenção tributária. 3ª ed., São Paulo: Malheiros, 2001.
CARRAZZA, Roque Antônio, ICMS. 2ª ed., São Paulo: Malheiros, 1995.
MELO, José Eduardo Soares de, e LIPPO, Luiz Francisco, A não-cumulatividade tributária (ICMS, IPI, ISS, PIS e CONFINS). 2ª ed., São Paulo: Dialética, 2004.
MACHADO, Hugo de Brito, Comentários ao Código Tributário Nacional. São Paulo: Atlas, 2003.
CARVALHO, Paulo de Barros, A regra matriz do ICM.TEPEDINO, Gustavo, BARBOSA, Heloisa Helena, MORAIS, Maria Celina Bodin de, Código civil interpretado conforme a Constituição da República .

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(*) Advogado em Natal.
[i] MACHADO, Hugo de Brito, Comentários ao Código Tributário Nacional. São Paulo: Atlas, 2003, v.1, p.495.
[ii] CARRAZZA, Roque Antônio, ICMS. 2ª ed., São Paulo: Malheiros, 1995. p. 22.
[iii] MELO, José Eduardo Soares de, e LIPPO, Luiz Francisco, A não-cumulatividade tributária (ICMS, IPI, ISS, PIS e CONFINS). 2ª ed., São Paulo: Dialética, 2004. p. 32.
[iv] MACHADO, Hugo de Brito, Comentários ao Código Tributário Nacional. São Paulo: Atlas, 2003, v.1, p.495.
[v] Apud, MELO, José Eduardo Soares de, e LIPPO, Luiz Francisco, A não-cumulatividade tributária (ICMS, IPI, ISS, PIS e CONFINS). 2ª ed., São Paulo: Dialética, 2004. p. 35.
[vi] TEPEDINO, Gustavo, BARBOSA, Heloisa Helena, MORAIS, Maria Celina Bodin de, Código civil interpretado conforme a Constituição da República. Rio de Janeiro: Renovar, 2004. p. 669.
[vii] Apud, MELO, José Eduardo Soares de, e LIPPO, Luiz Francisco, A não-cumulatividade tributária (ICMS, IPI, ISS, PIS e CONFINS). 2ª ed., São Paulo: Dialética, 2004. p. 129.

domingo, 2 de novembro de 2008

D - Consumidor de energia elétrica.



DIREITO DOS CONSUMIDORES AO RESSARCIMENTO DE INVESTIMENTOS REALIZADOS NA AMPLIAÇÃO DE REDES DE DISTRIBUIÇÃO DE CONCESSIONÁRIAS DE ENERGIA ELÉTRICA.

José Sávio Lopes(*)


Os usuários de energia elétrica com tensão igual ou superior a 2,3 kV, ou mesmo com tensão inferior, mas atendidos a partir de sistema subterrâneo, estão sendo obrigados, em algumas situações, a investirem na ampliação da rede da concessionária do serviço público, sem, contudo, serem restituídos dos valores aplicados nos equipamentos.

Este trabalho tem por objetivo demonstrar que a base normativa em que se apóiam as empresas distribuidoras para negarem a devolução dos valores aplicados em sua planta não tem sustentação legal e constitucional, possibilitando, assim, que em ações judiciais os consumidores possam reavê-los.

PARA ENTENDER A QUESTÃO

O serviço de distribuição de energia elétrica é regulado pela Aneel através da Resolução de nº 456 de 29 de Novembro de 2000 que estabelece, de forma atualizada e consolidada, as condições gerais de fornecimento.

Pelos incisos XXII e XXIII do artigo 2º desta Resolução, os consumidores são agrupados segundo a tensão fornecida: Grupo A - Grupamento composto de unidades consumidoras com fornecimento em tensão igual ou superior a 2,3 kV, ou, ainda, atendido em tensão inferior a 2,3 kV a partir de sistema subterrâneo e Grupo B - Grupamento composto de unidades consumidoras com fornecimento em tensão inferior a 2,3 kV, ou, ainda, atendidas em tensão superior a 2,3 kV.

O problema aqui levantado encontra-se nos consumidores classificados no Grupo A.

Conforme a mesma Resolução, no inciso II, do artigo 3º, efetivado o pedido de fornecimento à concessionária de energia, esta cientificará ao interessado quanto à “eventual necessidade de: execução de obras e/ou serviços nas redes e/ou instalação de equipamentos, da concessionária e/ou do consumidor, conforme a tensão de fornecimento e a carga instalada a ser atendida; participação financeira do interessado, na forma da legislação e regulamentos aplicáveis” (grifos apostos).

Talvez pela proximidade entre sua publicação e a publicação do Código de Defesa do Consumidor (11.09.1990) tal regra, absurda, diga-se de passagem, tenha sido levada a efeito. Mesmo assim, vê-se pelo texto que não se trata de regra absoluta. Apenas eventualmente o consumidor poderá participar do investimento necessário. Regulava esta participação financeira a Portaria de nº 5 do DNAEE[2] de 11 de janeiro de 1990.

O programa de privatização das empresas de serviços de distribuição de energia elétrica trouxe em seu bojo o Plano de Universalização, estabelecendo as metas que tais empresas deveriam atingir no cumprimento de seus contratos de concessão. Sua base encontra-se no artigo 14 da Lei 10.438 de 26 de abril de 2002 e as condições gerais para elaboração de tais planos pelas empresas concessionárias foram estabelecidas pela ANEEL, um ano depois pela Resolução de nº 223 de 29 de abril de 2003.

É bom que se diga de imediato que o Plano de Universalização trata do atendimento de consumidores identificados com o Grupo B, como se depreende da definição encontrada para este verbete no artigo 2º da Resolução de nº 223: “Universalização: atendimento a todos os pedidos de nova ligação para fornecimento de energia elétrica a unidades consumidoras com carga instalada menor ou igual a 50 kW, em tensão inferior a 2,3 kV, ainda que necessária a extensão de rede de tensão inferior ou igual a 138 kV, sem ônus para o solicitante, observados os prazos fixados nas Condições Gerais de Fornecimento de Energia Elétrica”.

A Resolução 223 preceitua que a "partir da data de publicação desta Resolução, a concessionária deverá atender, sem qualquer ônus para o solicitante, ao pedido de nova ligação para unidade consumidora cuja carga instalada seja menor ou igual a 50 kW, com enquadramento no Grupo B, que possa ser efetivada mediante extensão de rede em tensão inferior a 2,3 kV, inclusive instalação ou substituição de transformador, ainda que seja necessário realizar reforço ou melhoramento na rede em tensão igual ou inferior a 138 kV"[3].

Mais ainda: "a partir de 1º de janeiro de 2004, a concessionária também deverá atender, sem qualquer ônus para o solicitante, ao pedido de nova ligação para unidade consumidora cuja carga instalada seja menor ou igual a 50 kW, com enquadramento no Grupo B, que possa ser efetivada em tensão inferior a 2,3 kV, ainda que seja necessária extensão de rede em tensão igual ou inferior a 138 kV, observado o respectivo Plano de Universalização de Energia Elétrica"[4] (grifos apostos).

Além de tudo isso, o artigo 18 da mesma Resolução de nº 2, em face da extinção de qualquer participação financeira do consumidor, revogou[5] a Portaria DNAEE nº 5, que regulava a malfadada participação financeira do consumidor, alhures falada.

Atente-se que a intenção do governo foi proteger o pequeno consumidor – tensão inferior a 2,3 kV - que, sem regras controladoras, poderia tornar-se vítima da sanha capitalista da iniciativa privada. A regra geral é que o atendimento deve ser feito sem nenhum ônus para o consumidor.

Claro, inconcebível admitir que caberia ao consumidor o ônus de arcar com os investimentos necessários ao fornecedor para satisfazer um serviço essencial por aquele requerido.

Porém, no entender neoliberal então vigente, para viabilizar a privatização estabeleceram-se prazos para atendimento sem ônus a estes consumidores. Tanto, que pelo artigo 18 da Resolução 223 a ANEEL revoga a portaria nº 5 do DNAEE, ressaltando, porém, com a expressão quando for o caso (art. 17), que, em se tratando de consumidor inserido no Plano de Universalização, ou seja, Grupo B, a isenção do ônus depende do seu atingimento[6].

Uma atenção deve ser dada à inteligência dos artigos 17 e 18: apenas os consumidores do grupo B, com a revogação da portaria nº 5 do DNAEE e inclusão do § 1º ao art. 3º da Resolução 456, continuaram sujeitos à participação financeira, ou seja, por pertencerem ao grupo a que se refere o Plano de Universalização dependem do seu atingimento para livrar-se de possível ônus financeiro para ser atendido.

Dito de outra forma, a partir de então, exceto para os clientes de baixa capacidade, no que concerne à custa do atendimento, estabeleceu-se o tratamento esperado nas relações entre fornecedor e consumidor. Ou seja, fornecedor investe e o consumidor paga pelo serviço prestado.

MUDANÇA DAS REGRAS

Cumprida a fase de privatização, sobreveio a crise de fornecimento de energia elétrica. Com ela, o Estado insurge-se contra o consumidor criando novas regras, impondo-lhe, através de exações, o ônus pela crise. Por intermédio da Medida Provisória 127 de 4 de agosto de 2003, transformada depois em Lei (A Lei 10.762, de 26 de abril de 2002), alterando a Lei 10.438/2002, modificaram-se as bases da Universalização.

Dentre estas alterações, afastando qualquer dúvida quanto aos limites da Universalização e da obrigação das concessionárias de atender sem qualquer ônus os clientes, mesmo com investimentos em sua rede de distribuição, foi acrescido ao artigo 14, da referida Lei, o § 1º, estabelecendo o seguinte: “§ 1o. O atendimento dos pedidos de nova ligação ou aumento de carga dos consumidores que não se enquadram nos termos dos incisos I e II[7] deste artigo, será realizado à custa da concessionária ou permissionária, conforme regulamento específico a ser estabelecido pela ANEEL, que deverá ser submetido a Audiência Pública. (grifos apostos)”

Motivada por este novo preceito, a ANEEL, através da Resolução Normativa de nº 52 de 25 de março de 2004, acresceu à Resolução de nº 223 o artigo 18-A: “Os pedidos de fornecimento não enquadrados nas condições estabelecidas nos artigos 3º, 4º e 16, inclusive os pedidos de aumento de carga, serão tratados de acordo com regulamentação específica a ser publicada pela ANEEL”.

INTERPRETAÇÕES POSSÍVEIS

Afastada qualquer hipótese de má-fé pela incúria das concessionárias de energia, as bases para negar o ressarcimento dos investimentos feitos pelos consumidores na ampliação de rede de distribuição daquelas, consubstanciam-se no emaranhado de regras acima articuladas.

Ora, se estar frente a uma situação em que o capital dominante utiliza artifícios interpretativos de legislação para lesar os interesses do hiposuficiente.

Deixando também a largo a possível má-fé do legislador, o § 1º da Lei 10.438/2002 não criou nova regra quanto à obrigação da concessionária pelo ônus necessário para o atendimento de seus consumidores. Pelo contrário, apesar de regra comezinha das relações fornecedor-consumidor, garantiu o que já estava positivado.

Não afastando, agora, a má-fé do legislador, por que a ANEEL, evitando interpretações dúbias e prejudiciais ao consumidor, ao introduzir o artigo 18-A na Resolução 223, não estabeleceu que até a publicação de tal regulamentação mantivessem as regras vigentes? O artigo 10 dos Atos das Disposições Constitucionais Transitórias é exemplo maior de como o legislador, quando quer, protege o hiposuficiente.

Ao intérprete restam duas interpretações: (a) ou o legislador apenas pretendeu ratificar o que já estava positivado, criando apenas uma possibilidade de que por regulamentação, criassem condições para o ressarcimento, a exemplo de parcelamentos, compensações, etc., ou, (b) veladamente, usou de má-fé ao acrescer a necessidade de regulamentação como condição para atendimento sem ônus para o consumidor.

Admitida a primeira hipótese, é de se reconhecer a interpretação equivocada das concessionárias de energia, e estas, não pairam dúvidas, estão obrigadas a ressarcir os consumidores pelos investimentos necessários.

Admitida a má-fé do legislador, estar-se diante de uma afronta aos princípios constitucionais de proteção ao cidadão e ao consumidor. Sobejando aos consumidores o direito ao ressarcimento.

A TUTELA DO CONSUMIDOR

O ordenamento jurídico brasileiro tutela as relações de consumo em normas constitucionais e infraconstitucionais. Este edifício está construído a partir da harmonização, dentre outros princípios, das normas contidas no inciso XXXII[8] do artigo 5º e artigo 170[9], ambos da Constituição Federal. Destas regras e princípios estabeleceu-se o Código de Defesa do Consumidor com todo seu arcabouço protetivo das relações consumeristas.

Como se sabe, o sistema jurídico brasileiros, no dizer de Rizzato Nunes[10], é interpretável a partir da idéia de sistema hierárquico. Qualquer exame ou acatamento de norma infraconstitucional deve iniciar pela adequação desta à norma máxima.

O Código de Defesa do Consumidor, em consonância com a Lei Maior, logo no seu artigo 4º, explicita seus princípios basilares tendo por objetivo o atendimento das necessidades dos consumidores, o respeito à sua dignidade, a proteção de seus interesses econômicos, bem como a transparência e harmonia das relações de consumo.

Lista como princípios, além de outros, o reconhecimento da vulnerabilidade do consumidor no mercado, a presença do Estado, mesmo por iniciativa direta, no sentido de proteger efetivamente o consumidor, harmonizando os interesses das relações de consumo e a compatibilização da sua proteção com a necessidade do desenvolvimento econômico, de modo a viabilizar os princípios nos quais se funda a ordem econômica (art. 170, da Constituição Federal), sempre com base na boa-fé e equilíbrio nas relações entre consumidores e fornecedores.

O Código de Defesa do Consumidor compõe um sistema autônomo dentro do quadro constitucional. Dir-se-á um subsistema próprio inserido no sistema constitucional brasileiro. Assim posto, conforme Rizzato Nunes, “de um lado as regras do CDC estão logicamente submetidas aos parâmetros normativos da Carta Magna, e, de outro, todas as demais normas do sistema somente terão incidência nas relações de consumo se e quando houver lacuna no sistema consumerista. Caso não haja, não há por que nem como pensar em aplicar outra lei diversa da n. 8.078. O CDC, como sistema próprio que é, comporta, assim, que o intérprete lance mão de seus instrumentos de trabalho a partir e tendo em vista os princípios e regras que estão nele estabelecidos e que interagem entre si. O uso da técnica de interpretação lógico-sistemática é fundamental para o entendimento das normas do CDC, tanto como a de base teleológica, que permitirá entender seus princípios e finalidades[11]”.

Desta forma, qualquer norma inferior que afronte os princípios de proteção ao consumidor carece de constitucionalidade se contraria a Constituição, e de legalidade se se contrapõe ao Código de Defesa do Consumidor.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Assim entendido, inequívoco se admitir que os fatos, alhures narrados, subsumem-se às normas constitucionais e legais de proteção das pessoas e mais especificamente do consumidor. Também, que as normas legais e administrativas tendentes a mitigar ou afastar esses princípios e direitos afrontam a Lei Maior, não estando, portanto, sujeitas ao cumprimento.

Portanto, não há que se falar da inexistência de obrigação das concessionárias de energia elétrica de restituir aos consumidores o investimento por eles executado na ampliação de suas redes de distribuição e depois transferido para o patrimônio das próprias distribuidoras de energia.

Em situações como a aqui trazida, o consumidor deve buscar a tutela do judiciário para fazer valer seus direitos de ser atendido por um serviço público e essencial sem ter que arcar com os investimentos necessários.
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(*) Advogado em Natal. Pós-Graduado em Finanças Corporativas pela FGV, em Direito Processual Civil pela UNP e em Direito Tributário pela FARN. Autor de “Processo Tributário - Ação Revisional - Controle de constitucionalidade: conflitos entre os efeitos das decisões em juízo abstrato e em juízo concreto” in Prática Jurídica nº 53 e de “A atual discriminação de rendas tributárias e os tributos federais: novos paradigmas” in Revista de Direito tributário da APET nº 8.

[2] Departamento Nacional de Águas e Energia Elétrica - DNAEE

[3] Art. 3º.

[4] Art. 4º

[5] Art. 18. A Portaria DNAEE nº 5, de 11 de janeiro de 1990, fica revogada, em face da participação financeira do consumidor ter sido extinta conforme o art. 14 da Lei nº 10.438, de 2002 (grifos apostos).

[6] Art. 17. Ficam incluídos no art. 3º da Resolução ANEEL nº 456, de 2000, os §§ 1º e 2º com a seguinte redação:

Art. 3º ...........................................................................................

§ 1º O prazo para atendimento, sem ônus de qualquer espécie para o interessado, deverá obedecer, quando for o caso, ao Plano de Universalização, aprovado pela ANEEL;

[7] Os incisos I e II define áreas para os grupos B, sujeitas a regras da Universalização.

[8] Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: (...); XXXII - o Estado promoverá, na forma da lei, a defesa do consumidor;(...).

[9] Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios: (...); IV - livre concorrência; V - defesa do consumidor; (...)

[10] Comentários ao código de defesa do consumidor. São Paulo: Saraiva, 2005. p. 11.

[11] Comentários ao código de defesa do consumidor. São Paulo: Saraiva, 2005. p. 11.

C - Os seios de tia Guié.




Pra Enoque Soares pela tresidela e sacuia.


Vindo pelo lado de Pedreiras, já se identificava o pessoal na tresidela do rio Mearim. Na canoa, além do barqueiro, seus filhos Gino e Maurício.

De repente, uma pequena trouxa corrupiando nos redemoinhos da sacuia, resistia à correnteza. Sem que percebessem, pescou o pacote, escondendo-o entre os seios. Sentiu o conforto da água gelada no colo suado.

O cansaço era visível. A fuga da seca implacável já passava de mês e, de caminhada, mais de oitenta léguas tiranas na busca por dias melhores nas terras úmidas do Maranhão.

Vindos dos cafundós, haviam atravessado, pelo Inhamuns, todo o Ceará, cruzado o Piauí e adentrado o Maranhão. Não mais se agüentavam de pé. Nem os meninos, pendurados em caçuás dos jumentos, de tanto baterem no couro cru daquela nave insólita, escaparam das dores nas costas e nas ancas. Os cotovelos, então, estavam em chagas.

Juntos, outras famílias da mesma região potiguar. Na travessia fizeram de tudo, se sujeitaram a tudo, viram e ouviram o que jamais acreditaram. Bandos de retirantes ficaram pra traz. Outros tantos encontrados, como se a prometida fosse a terra donde vinham. Nas vilas e lugarejos decorridos, assustaram-se com os rumores sobre cangaceiros e se divertiram com Vicente Badalo, falante pelos cotovelos, ironicamente fingindo-se de mudo para pedir esmolas.

Na noite passada não pregara os olhos depois de João Cajé, seu marido, contar os últimos vinténs, mal chegados pra travessia do rio.

Ancorados, foram constrangidos à revista de tudo, salvado apenas os seios de tia Guié - tempos em que não se metia mãos em peitos por motivos pífios.

Razão pra revista? Não Sei Quem, de Não Sei de Onde, havia perdido não sei quanto. Pelo aparato, gente graúda.

Assentados, abriu a trouxinha. Enrolados, feito charuto, cento e cinqüenta mil réis. Pra comparar, anos antes, em época sem inflação, dona Alexandrina, sua sogra, comprara por noventa mil réis, terras com meia légua de frente e légua e meia de fundos.

O achado foi suficiente para a sobrevivência da família nos tempos secos de quarenta e dois e proporcionar, três anos depois, seu retorno pro seu Riacho de Santana donde fugira da sede e da fome.

C - Roteiro para um conto.



Pra Salete que, como Emília Pequena, foi acolhida por Júlia.


Logo cedo, tratou de arrumar a casa que em pouco deixaria de ser o seu lar. Nunca admitia o mínimo vestígio de desorganização. Casa modesta, de poucos móveis e utensílios, mas, todos em seus devidos lugares. A limpeza do chão, de tijolo batido, dava inveja.

Roupas lavadas e passadas, panelas de ferro reluzidas pela areia do rio e as colheres com o falso dourado das colheres de arame. Tudo, tudo limpinho.

Terminada a limpeza, banhou-se no açude, excedeu no perfume, penteou os longos cabelos.

Para se envaidecer, deu uma última olhada no espelho. A imagem de dor escondia os vestígios do buço que herdara. Talvez a única parte de seu corpo que a desgostava.

Em pouco, Emília não seria mais Pequena.

Emília, ou melhor, Emilia Pequena, era filha de Donato e, desde a morte de sua mãe, fora criada por seus tios, Júlia, consangüínea, e Manuel de Fontes, afim. Tinham-na como filha, em troca, chamava-os por mãe e pai. Emília era Pequena pra diferençar da outra Emília, sua prima e filha legítima de seus pais adotivos.

Feito moça, Emilia Pequena casou com Chico Soares, jovem bonito e trabalhador. Depois se soube também exímio na arte do galanteio.

Logo depois do casamento, Emilia Pequena descobriu que Chico mantinha um romance com Tereza, filha de Chico Turbano. Esta duplicidade de amores deu azo às primeiras discórdias do casal. Embora de índole cordial, Emília não aceitou aquela situação. Apesar das advertências dos sogros-tios-pais, Chico insistia em manter a aventura amorosa.

Nem o nascimento dos dois filhos, mortos de forma prematura, mudou a relação. O ápice foi atingido quando Chico resolveu trazer Tereza pra morarem juntos. Emilia se valeu do tio-pai para impedir tal desvario, recebendo a promessa de que, enquanto vivo Chico não teria coragem suficiente para cumprir o dito.

Apesar dos conselhos para largar seu marido, Emilia não aquiesceu. Difícil de se conceber naqueles anos quarenta numa Zé da Penha que ainda era Mata.

Ademais, Chico sabia que Manuel de Fontes, além de não cevar nó na língua, tinha pulso e coragem pra impedir seus planos. Nos dias que se seguiram, como por vingança, Chico passou também a maltratar Emília. Não se soube de agressões físicas, mas, de palavrões e outras humilhações.

Emília Pequena não suportou viver sob o signo da traição e resolveu deixar Chico livre pra sua amante.

Pôs em ordem toda a casa, seu lar infeliz. Subiu em uma cadeira, prendeu a corda em um caibro, amarrou-a sobre o pescoço, deu um leve puxão pra certeza do nó e empurrou com os pés o assento.

Quando a encontraram, já havia algumas horas.

C - Quase namorou.


Sem dedicatória, por garantia.


Em que pese a mesquinhez da natureza na compleição de Zezé, ele era muito feliz. Pelos menos, parecia. Como os gordos, os feios insistem em parecer, e gostam de afirmar, serem muito felizes.

Zezé não era diferente. Contador de piadas, sem preterir as que ironizam os feios, e de riso fácil, estava sempre pronto para servir. Amigo de todos e de todas as horas. Se preciso, um gentleman.

Dificuldades? Nos meandros do amor. Não que enfrentasse dificuldades para amar, ou sofresse de algum mal físico, quiçá psíquico. Nada disso. Tudo, tudo residia na sua feiúra.

Melhoras acentuadas quando foi trabalhar por uma semana em uma cidade vizinha.

Hora das refeições, todos juntos no único restaurante da cidade. Conversa vai, conversa vem, ninguém ignorou o interesse e o tratamento diferenciado da garçonete sobre Zezé.

Nos dias seguintes, repetiram-se os fatos. Sorriso aberto, cochichos no pé do ouvido das colegas, parecia muxoxo. Não se controlava ao cruzar seus olhos com os de Zezé.

Sexta-feira. Afora Zezé, em torno da mesa todos prontos para o serviço.

Serelepe, a garçonete se aproxima e antes do obrigatório o que desejam, perguntou:

- e aquele baixinho, feio de fazer dó, não veio?

sábado, 1 de novembro de 2008

C - O tresloucado amor de Bento Tremelique.



Pra Eugênio, que me falou de Tremelique.

Bento Tremelique, Bento Cavalcanti de Albuquerque, conheceu Vicência na fazenda Curralinho em festa que seu tio Florêncio do Rêgo Leite ofereceu para comemorar a liberdade de dois sobrinhos, defendidos em júri por Bento. Amor de primeira vista.

Florêncio conhecera Tremelique em Pau dos Ferros no início de 1840 intermediado por seu sobrinho, e primo de Vicência, Pe. José Paulino do Rêgo Leite, quando buscava um advogado para defesa dos parentes criminosos.

Tremelique era pernambucano, aventureiro e de passado incógnito. Daí a objeção dos Rêgos a que o namoro medrasse.

Irresignado, com a ajuda de trinta homens providencialmente contratados em Boqueirão do Jaguaribe, Tremelique raptou Vicência a muque, depositando-a em Caixa-só [1], em casa de um coronel amigo. Ato contínuo foi até Pereiro marcar o casamento, para o dia seguinte.

Entrementes, sob o comando de Florêncio, os Rêgos arregimentaram um pequeno exército e sairam em perseguição à Tremelique.

Numa emboscada estrategicamente armada no sopé da serra do Pereiro ocorreu o confronto. Depois de intenso tiroteio, Tremelique fugiu com o seu bando, possibilitando a recaptura da noiva, ora casada.

Em revide, Tremelique repetiu o ataque à fazenda Curralinho e não encontrando ninguém da família, subtraiu três escravos, vendendo-os em Aracati.

Em desagravo, os Rêgos impuseram constante perseguição a Tremelique, culminando em 1846 em Icó, onde se fixara, quando, por milagre, escapou de um ataque noturno ao seu estabelecimento comercial.

Depois da fuga em Icó, só em 1849 Tremelique deu o ar de sua graça. De Jurumenha, no Piauí, escreveu para o Pe. José Paulino rogando-o para envidar o seu valimento junto ao senhor seu pai e tios, para que, se esquecendo do passado, me restituírem a minha consorte de que há nove anos vivo apartado involuntariamente com a maior das injustiças.

Com endereço de Malhada Vermelha, em resposta, o Pe. José Paulino negou ajuda, alegando não poder ser com Vmcê. sócio em tal pretensão, porque classificou-se Vmcê. na esfera de um monstro, que se alimentando no suco da discórdia, está sempre com espada desembainhada para promover intrigas e dissensões, e, para isto tomou por garbo a perpetrar um ato tão execrando que deve horrorizar a tôda sua posteridade... ...Cêda à louca pretensão que eu lhe prometo que não sofrerá nenhuma perseguição dos de minha família.

Desconsolado, Tremelique fez distribuir um bê-á-bá em versos contando a sua insólita história.

Passado alguns anos, depois de obter a anulação do casamento, Vicência casou com seu primo Manuel Francisco, constituindo numerosa família em Pau dos Ferros onde, até então, vivera com um tio.
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[1] Atual Iracema.

C - Carta de Tremelique ao Pe. José Paulino


Vila de Jurumenha, 9 de março de 1849

Ilmo. e Revmo. Pe José Paulino de Rego Leite

Depois de saudar V. S., apetecer-lhe vigorosa saúde e dar-lhe os devidos parabéns pelo seu novo estado sacerdotal que acaba de conseguir, dando assim infinitos gostos ao seu bom pai que o soube criar; tenho a dizer-lhe que, dentre tantos membros de que é composta a sua família, só a V. Revma. me dirijo, pela vez primeira, a fim de interceder-lhe para envidar o seu valimento junto ao senhor seu pai e tios, para que, se esquecendo do passado, me restituírem a minha consorte de que há nove anos vivo apartado involuntariamente com a maior das injustiças. Espero que V. Revma. que tendo bebido a sapiência no Seminário de Olinda, onde recebeu ordem sacra, está por isso habilitado a julgar tão importante negócio. Não quero dizer que sou inteligente nem virtuoso, para com estas frases gozar de sua atenção, e obter o favor pedido; mas confesso-lhe que já não sou o homem de outrora, porque no curto espaço de três anos que deixei o País natal, vi muitas terras, corri paises imensos, viajei por terras dilatadas, atravessei abismos não conhecidos, desci aos infernos, subi aos céus e tendo assim vagada pelos incomensuráveis rigores que começam com o tempo e se acabam por esconderem na eternidade. Quantas cousas aprendi que ignorava; quantas trevas que me tinha a alma cega se desvaneceram; quantas ilusões do meu sentido se decifraram e quantas novas verdades conheci! Ora, afigura-se-me achar-me como um homem que depois de ter passado largo tempo da vida em uma cova escura aonde não penetrava luz alguma, saísse de repente a ver o sol. Por isso se eu achasse reunidos todos os meus escritos anteriores, os compraria, bem caro para entregá-os a lume. Espero em V. Revma., que tendo cingido o hábito de S. Pedro, sendo amado e respeitado de tôda sua família, que dela tudo pode conseguir e acabar de um só golpe caso tão pesado, qual sejam os males que há nove anos sôfro, estou certo de que se isto praticar, jamais lhe virá arrependimento algum. Quando, porém, queira resistir às minhas súplicas faça o bem que lhe exijo pelo amor da verdade, inclusive a Deus V. Revma. Se em mim descobrir alguns préstimos, pode dispor em qualquer quadra da vida. E visto que me assino desde já,

De V. Revma.

Amigo, patrício fiel e grato

Bento Cavalcanti de Albuquerque Maranhão.

C - Resposta do Padre à Tremelique.



Pau dos Ferros – Malhada de Areia, 10 de junho de 1849.

Ilmo. Sr. Bento Cavalcanti Albuquerque Maranhão.

Recebi a carta de Vmcê. com data de 9 de marco p. passado a que exigia de mim envidasse o meu pequeno valimento para com meu pai e tios restituirmos “a sua prezada consorte” e acabar de um só golpe tão passados males. Para não passar por incrível, respondo dizendo e certificando-lhe que de uma só vez jamais lhe poderei ser útil na exigência que me fez, por muitos motivos – o primeiro e principal é que minha, prima esta por quem Vmcê. se interessa, diz a peito limpo preferir morrer antes que ter algum dia um só pensamento de viver em sua companhia. E por isso quando muito não quisesse abusar da confiança da minha família para fazer o seu pedido; quando porém quisesse aterrar os direitos da humanidade, resistir a censura pública, jamais poderia sufocar a voz da razão a ser surdo ao brado de minha consciência, que me assusta cada vez mais que por uma tentazia imaginária com esta a esboçar ações indiscretas. E assim não posso ser com Vmcê. sócio em tal pretensão, porque classificou-se Vmcê. na esfera de um monstro, que se alimentando no suco da discórdia, está sempre com espada desembainhada para promover intrigas e dissensões, e, para isto tomou por garbo a perpetrar um ato tão execrando que deve horrorizar a tôda sua posteridade. Admiro-me muito e muito haver homens que sancionem tais casos, porém, estou certo de que êles não estão certificados da ocorrência do fato, porque se o soubessem diriam como eu digo e falariam como eu falo. Ainda que Vmcê. diz ter detestado todas as ações anteriores e dar mostra de compução, por isto, talvez, tenha pretensões a alcançar o que pretende. E eu o apoio e bem sei que é regra geral que arrependidos devem ser absolvidos, porém, é conforme a resolução de não reincidirem no crime, pois, Vmcê. dá aviso de arrependimento, porém, sempre renitente. Cêda à louca pretensão que eu lhe prometo que não sofrerá nenhuma perseguição dos de minha família. Dirá Vmcê. como já o tem feito que é um dever natural do homem amar e morrer por sua esposa. Espôsa...! Não manche com falso título um nome tão sagrado, não acoberte com o cândido veu da inocência tão negro crime, dê-lhe o nome de vítima, inocente e imolada pelo furor assomo brutal que os cruéis falsos protestos soube bem iludir o Ministro de Jesus Cristo, para cometer tão imundo sacrilégio. Sacrilégio incrível de que a mesma natureza infensa se horrorisa e o mesmo Deus cedo ou tarde há-de providenciar com a reta justiça de sua Onipotência. Vivemos hoje sobrecarregados dos imensos laes que nos causou o desgovernado amor da sua alma desenfreada. A minha prima, esta a quem Vmcê. dá o falso título de consorte, vive gemendo os seus males sucumbida no deserto ela tristeza, à maneira da inocente rôla que, sendo agredida pelos aruáis rapinos, veloz por um incidente escapa de suas garras, se entranha na espessura dos bosques, onde cercada de horror, gemendo, vive lastimando a sua sorte. Tal é o seu estado. E por conseguinte, o Senhor se desimagine dessa louca pretensão, que jamais conseguirá o que tão loucamente intenta, pois, poderá haver sacramento onde há sacrilégio?
A minha prima, de maneira alguma aceitará os seus propósitos. E a minha família ainda a esgotar todo os direitos quanto for possível lançar mão e eu, de acôrdo com ela na defesa dos direitos que nos assiste. Dirá Vmcê. que tendo eu cingido o hábito de S. Pedro, sou o primeiro a lhe promover a guerra como inimigo fidagal. Declaro ao senhor que não incôrro no preceito de Jesus Cristo, no seu Santo Evangelho. Sou sempre amante da verdade. E por isso mais uma vez repito: Vmcê. se desimagine dessa louca pretensão que é trabalhar em vão; é malhar em ferro frio; é questionar sem direito; é demandar sem razão. Teria muito que dizer-lhe, ainda, a respeito, porém, julgo inútil porque muito melhor saberá Vmcê. do que.
É o que tenho a dizer, êste que é de Vmcê. um servo, criado e patrício.

Pe. José Paulino do Rêgo Leite.

C - Conforto às costas.



Pra Rachel, de O Quinze, pelo gosto da leitura que me proporcionou.


As pernas inclinadas dos bancos garantem estabilidade ao assento e desconforto às costas.

- Por que não inclinam só as pernas do lado contrário à parede?

- Não sabes de Santinha? Quem já foi ao Canindé conhece essa história.

Órfã de mãe, Santa, já se fazendo mocinha, vivia com seu pai numa garra de terra em Castro, umas oito léguas antes de chegar ao Canindé.

Pra tentar a sorte no Maranhão, seu pai vendeu o que restava do que a seca de quinze ainda não destruíra.

De véspera, para ultimar providências, seu pai foi ao Canindé. Por cuidado, enterrou o dinheiro do apurado. Pra não deixá-la sozinha, mandou Santinha dormir em casa de um vizinho a menos de meia légua.

Água pras galinhas, ração pro jumento, uma varrida na casa e um arrumado a mais, quando se deu, o sol fenecera. O que mais dá medo? Dormir sozinha ou pegar a estrada escura? Ficou!

Portas fechadas, lamparina no caritó, reza pra adormecer. Dormiu!

Tinido de ferrolho pelo chão. Acordou!

Como um raio, quase deu com a lamparina na cara de um homem.

- Baixe essa luz, diabo!

Não dava mais. Era o vizinho que te daria abrigo. Tomou-a pelos braços, amarrou suas mãos com seu próprio lençol e a jogou de volta pra rede.

- Olha aqui mocinha! Eu só queria o dinheiro. Por que desobedeceste ao teu pai?

Sem relutar, apavorada, Santinha o levou até a cova do apurado.

Dinheiro na mão, o vizinho foi até a sala, pegou um relho pendendo dum torno e voltou para o quarto de Santinha.

- Vou ter que matá-la!

Esvaziou o banco colado à parede, colocando-o no meio do quarto.

Pra colar na parede, o banco fora feito com as pernas inclinadas apenas de um lado: conforto às costas e instabilidade ao assento.

Trepado no banco, prendeu o relho a um brabo e ajeitou um laço. Por via das dúvidas, o experimentou em sua própria cabeça.

Pés em falso, desequilíbrio do banco, falta de chão. Forca!

Tétrica, com o corpo paralisado, Santinha esperou seu pai. Pela luz que nascia, um corpo pendurado com a língua de fora. Medo maior.

C - Velho.

De autor desconhecido.


Velho é rico em experiência,
Pura vida, acumulada.
No que pese a sua idade,
Ainda pensa em namorada.
Dorme pouco, mija muito,
Entende de todo assunto,
Mais não se lembra de nada.

C - Santo Antônio



Pra Manuel de Fontes que lhe deu nome


Numa tarde modorrenta de junho ele apareceu se esgueirando pelo terreiro da casa grande do Junco. Amparou os braços sobre a cerca do curral, escorou um pé no pau que traspassava o mourão da porteira e se pôs a olhar o pessoal desleitando as vacas. Um negralhão atarracado, de testa alongada e de olhos grandes, com a camisa desabotoada e a gola empinada para traz.

- Quem é aquela visita?

Naquela tarde, todo o trabalho de ordenha foi fiscalizado pelo olhar implacável do estranho.

- Quem muito olha, quer coisa, não é verdade?

De resposta, um leve sorriso pelo canto da boca do desconhecido que parecia fugido de um quilombo.

- O que procuras?

- Trabalho.

- Sabe cuidar de gado?

- Sim.

- E de roça?

- Sim.

- Já foi preso alguma vez?

- Não.

- Nunca roubou de ninguém?

- Não.

- Tem mulher, filhos, mãe...?

- Não.

- Bom, pelo que nunca fez, pelo que diz saber e sem os encostos que diz não ter, se não fosse negro, eu ia achar que era Santo Antônio.

Daquele dia em diante todos o conheceram por Santo Antônio. Não se soube de onde veio, quem era e qual seu verdadeiro nome.

Sempre morou só, de preferência afastadado. De vocabulário? Conhecia o sim, o não e alguns outros que lhe garantissem comida e trabalho.

De amizades, sabia-se de Mum da Veia Chica. Outro que se juntássemos as palavras ditas em vida não dava pra encher esse texto.

Raras vezes, pra agüentar o calor na queima de caieiras, se dava ao deleite de uma lapada de cana.

Além da capacidade para o trabalho decantava-se sua coragem. Não tinha medo de nada. A qualquer hora do dia ou da noite iria à qualquer lugar. Até aproveitavam de sua inocência pra testar sua coragem.

Certa vez, em noite de queima de tijolos pras bandas da Lagoa de Pedra, apostaram se seria capaz de trazer um caixão-de-anjo do cemitério.

- Caixão-de-anjo não. Isso é malvadeza.

Como já passava de meia-noite, acertou-se que não precisaria voltar. Para provar, deixaria enfiado sua doze polegadas na primeira cova da entrada do portão.

Cedinho correrem pra conferir a aposta.

Na primeira cova encontraram a faca, como combinado. Presa à faca, pela ponta da bainha do lado em que se pregam os botões, estava a camisa velha e suada de Santo Antônio. Quem sabe, uma prova a mais de sua coragem.

Passados quase uma semana do desaparecimento de Santo Antonio, o encontaram escondido na casa de Mum da Veia Chica, que explicou:

Naquela noite, enfiado a faca, uma força estranha lhe puxou pela camisa tentando levá-lo pra dentro da cova.

Com muito esforço, conseguiu se livrar da camisa e correr até a sua casa, onde ainda permanecia assustado.

Tempos depois, como chegara, Santo Antônio sumiu. Não se sabe como, quando nem pra onde.