sábado, 1 de novembro de 2008

C - Santo Antônio



Pra Manuel de Fontes que lhe deu nome


Numa tarde modorrenta de junho ele apareceu se esgueirando pelo terreiro da casa grande do Junco. Amparou os braços sobre a cerca do curral, escorou um pé no pau que traspassava o mourão da porteira e se pôs a olhar o pessoal desleitando as vacas. Um negralhão atarracado, de testa alongada e de olhos grandes, com a camisa desabotoada e a gola empinada para traz.

- Quem é aquela visita?

Naquela tarde, todo o trabalho de ordenha foi fiscalizado pelo olhar implacável do estranho.

- Quem muito olha, quer coisa, não é verdade?

De resposta, um leve sorriso pelo canto da boca do desconhecido que parecia fugido de um quilombo.

- O que procuras?

- Trabalho.

- Sabe cuidar de gado?

- Sim.

- E de roça?

- Sim.

- Já foi preso alguma vez?

- Não.

- Nunca roubou de ninguém?

- Não.

- Tem mulher, filhos, mãe...?

- Não.

- Bom, pelo que nunca fez, pelo que diz saber e sem os encostos que diz não ter, se não fosse negro, eu ia achar que era Santo Antônio.

Daquele dia em diante todos o conheceram por Santo Antônio. Não se soube de onde veio, quem era e qual seu verdadeiro nome.

Sempre morou só, de preferência afastadado. De vocabulário? Conhecia o sim, o não e alguns outros que lhe garantissem comida e trabalho.

De amizades, sabia-se de Mum da Veia Chica. Outro que se juntássemos as palavras ditas em vida não dava pra encher esse texto.

Raras vezes, pra agüentar o calor na queima de caieiras, se dava ao deleite de uma lapada de cana.

Além da capacidade para o trabalho decantava-se sua coragem. Não tinha medo de nada. A qualquer hora do dia ou da noite iria à qualquer lugar. Até aproveitavam de sua inocência pra testar sua coragem.

Certa vez, em noite de queima de tijolos pras bandas da Lagoa de Pedra, apostaram se seria capaz de trazer um caixão-de-anjo do cemitério.

- Caixão-de-anjo não. Isso é malvadeza.

Como já passava de meia-noite, acertou-se que não precisaria voltar. Para provar, deixaria enfiado sua doze polegadas na primeira cova da entrada do portão.

Cedinho correrem pra conferir a aposta.

Na primeira cova encontraram a faca, como combinado. Presa à faca, pela ponta da bainha do lado em que se pregam os botões, estava a camisa velha e suada de Santo Antônio. Quem sabe, uma prova a mais de sua coragem.

Passados quase uma semana do desaparecimento de Santo Antonio, o encontaram escondido na casa de Mum da Veia Chica, que explicou:

Naquela noite, enfiado a faca, uma força estranha lhe puxou pela camisa tentando levá-lo pra dentro da cova.

Com muito esforço, conseguiu se livrar da camisa e correr até a sua casa, onde ainda permanecia assustado.

Tempos depois, como chegara, Santo Antônio sumiu. Não se sabe como, quando nem pra onde.

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