domingo, 2 de novembro de 2008

D - Consumidor de energia elétrica.



DIREITO DOS CONSUMIDORES AO RESSARCIMENTO DE INVESTIMENTOS REALIZADOS NA AMPLIAÇÃO DE REDES DE DISTRIBUIÇÃO DE CONCESSIONÁRIAS DE ENERGIA ELÉTRICA.

José Sávio Lopes(*)


Os usuários de energia elétrica com tensão igual ou superior a 2,3 kV, ou mesmo com tensão inferior, mas atendidos a partir de sistema subterrâneo, estão sendo obrigados, em algumas situações, a investirem na ampliação da rede da concessionária do serviço público, sem, contudo, serem restituídos dos valores aplicados nos equipamentos.

Este trabalho tem por objetivo demonstrar que a base normativa em que se apóiam as empresas distribuidoras para negarem a devolução dos valores aplicados em sua planta não tem sustentação legal e constitucional, possibilitando, assim, que em ações judiciais os consumidores possam reavê-los.

PARA ENTENDER A QUESTÃO

O serviço de distribuição de energia elétrica é regulado pela Aneel através da Resolução de nº 456 de 29 de Novembro de 2000 que estabelece, de forma atualizada e consolidada, as condições gerais de fornecimento.

Pelos incisos XXII e XXIII do artigo 2º desta Resolução, os consumidores são agrupados segundo a tensão fornecida: Grupo A - Grupamento composto de unidades consumidoras com fornecimento em tensão igual ou superior a 2,3 kV, ou, ainda, atendido em tensão inferior a 2,3 kV a partir de sistema subterrâneo e Grupo B - Grupamento composto de unidades consumidoras com fornecimento em tensão inferior a 2,3 kV, ou, ainda, atendidas em tensão superior a 2,3 kV.

O problema aqui levantado encontra-se nos consumidores classificados no Grupo A.

Conforme a mesma Resolução, no inciso II, do artigo 3º, efetivado o pedido de fornecimento à concessionária de energia, esta cientificará ao interessado quanto à “eventual necessidade de: execução de obras e/ou serviços nas redes e/ou instalação de equipamentos, da concessionária e/ou do consumidor, conforme a tensão de fornecimento e a carga instalada a ser atendida; participação financeira do interessado, na forma da legislação e regulamentos aplicáveis” (grifos apostos).

Talvez pela proximidade entre sua publicação e a publicação do Código de Defesa do Consumidor (11.09.1990) tal regra, absurda, diga-se de passagem, tenha sido levada a efeito. Mesmo assim, vê-se pelo texto que não se trata de regra absoluta. Apenas eventualmente o consumidor poderá participar do investimento necessário. Regulava esta participação financeira a Portaria de nº 5 do DNAEE[2] de 11 de janeiro de 1990.

O programa de privatização das empresas de serviços de distribuição de energia elétrica trouxe em seu bojo o Plano de Universalização, estabelecendo as metas que tais empresas deveriam atingir no cumprimento de seus contratos de concessão. Sua base encontra-se no artigo 14 da Lei 10.438 de 26 de abril de 2002 e as condições gerais para elaboração de tais planos pelas empresas concessionárias foram estabelecidas pela ANEEL, um ano depois pela Resolução de nº 223 de 29 de abril de 2003.

É bom que se diga de imediato que o Plano de Universalização trata do atendimento de consumidores identificados com o Grupo B, como se depreende da definição encontrada para este verbete no artigo 2º da Resolução de nº 223: “Universalização: atendimento a todos os pedidos de nova ligação para fornecimento de energia elétrica a unidades consumidoras com carga instalada menor ou igual a 50 kW, em tensão inferior a 2,3 kV, ainda que necessária a extensão de rede de tensão inferior ou igual a 138 kV, sem ônus para o solicitante, observados os prazos fixados nas Condições Gerais de Fornecimento de Energia Elétrica”.

A Resolução 223 preceitua que a "partir da data de publicação desta Resolução, a concessionária deverá atender, sem qualquer ônus para o solicitante, ao pedido de nova ligação para unidade consumidora cuja carga instalada seja menor ou igual a 50 kW, com enquadramento no Grupo B, que possa ser efetivada mediante extensão de rede em tensão inferior a 2,3 kV, inclusive instalação ou substituição de transformador, ainda que seja necessário realizar reforço ou melhoramento na rede em tensão igual ou inferior a 138 kV"[3].

Mais ainda: "a partir de 1º de janeiro de 2004, a concessionária também deverá atender, sem qualquer ônus para o solicitante, ao pedido de nova ligação para unidade consumidora cuja carga instalada seja menor ou igual a 50 kW, com enquadramento no Grupo B, que possa ser efetivada em tensão inferior a 2,3 kV, ainda que seja necessária extensão de rede em tensão igual ou inferior a 138 kV, observado o respectivo Plano de Universalização de Energia Elétrica"[4] (grifos apostos).

Além de tudo isso, o artigo 18 da mesma Resolução de nº 2, em face da extinção de qualquer participação financeira do consumidor, revogou[5] a Portaria DNAEE nº 5, que regulava a malfadada participação financeira do consumidor, alhures falada.

Atente-se que a intenção do governo foi proteger o pequeno consumidor – tensão inferior a 2,3 kV - que, sem regras controladoras, poderia tornar-se vítima da sanha capitalista da iniciativa privada. A regra geral é que o atendimento deve ser feito sem nenhum ônus para o consumidor.

Claro, inconcebível admitir que caberia ao consumidor o ônus de arcar com os investimentos necessários ao fornecedor para satisfazer um serviço essencial por aquele requerido.

Porém, no entender neoliberal então vigente, para viabilizar a privatização estabeleceram-se prazos para atendimento sem ônus a estes consumidores. Tanto, que pelo artigo 18 da Resolução 223 a ANEEL revoga a portaria nº 5 do DNAEE, ressaltando, porém, com a expressão quando for o caso (art. 17), que, em se tratando de consumidor inserido no Plano de Universalização, ou seja, Grupo B, a isenção do ônus depende do seu atingimento[6].

Uma atenção deve ser dada à inteligência dos artigos 17 e 18: apenas os consumidores do grupo B, com a revogação da portaria nº 5 do DNAEE e inclusão do § 1º ao art. 3º da Resolução 456, continuaram sujeitos à participação financeira, ou seja, por pertencerem ao grupo a que se refere o Plano de Universalização dependem do seu atingimento para livrar-se de possível ônus financeiro para ser atendido.

Dito de outra forma, a partir de então, exceto para os clientes de baixa capacidade, no que concerne à custa do atendimento, estabeleceu-se o tratamento esperado nas relações entre fornecedor e consumidor. Ou seja, fornecedor investe e o consumidor paga pelo serviço prestado.

MUDANÇA DAS REGRAS

Cumprida a fase de privatização, sobreveio a crise de fornecimento de energia elétrica. Com ela, o Estado insurge-se contra o consumidor criando novas regras, impondo-lhe, através de exações, o ônus pela crise. Por intermédio da Medida Provisória 127 de 4 de agosto de 2003, transformada depois em Lei (A Lei 10.762, de 26 de abril de 2002), alterando a Lei 10.438/2002, modificaram-se as bases da Universalização.

Dentre estas alterações, afastando qualquer dúvida quanto aos limites da Universalização e da obrigação das concessionárias de atender sem qualquer ônus os clientes, mesmo com investimentos em sua rede de distribuição, foi acrescido ao artigo 14, da referida Lei, o § 1º, estabelecendo o seguinte: “§ 1o. O atendimento dos pedidos de nova ligação ou aumento de carga dos consumidores que não se enquadram nos termos dos incisos I e II[7] deste artigo, será realizado à custa da concessionária ou permissionária, conforme regulamento específico a ser estabelecido pela ANEEL, que deverá ser submetido a Audiência Pública. (grifos apostos)”

Motivada por este novo preceito, a ANEEL, através da Resolução Normativa de nº 52 de 25 de março de 2004, acresceu à Resolução de nº 223 o artigo 18-A: “Os pedidos de fornecimento não enquadrados nas condições estabelecidas nos artigos 3º, 4º e 16, inclusive os pedidos de aumento de carga, serão tratados de acordo com regulamentação específica a ser publicada pela ANEEL”.

INTERPRETAÇÕES POSSÍVEIS

Afastada qualquer hipótese de má-fé pela incúria das concessionárias de energia, as bases para negar o ressarcimento dos investimentos feitos pelos consumidores na ampliação de rede de distribuição daquelas, consubstanciam-se no emaranhado de regras acima articuladas.

Ora, se estar frente a uma situação em que o capital dominante utiliza artifícios interpretativos de legislação para lesar os interesses do hiposuficiente.

Deixando também a largo a possível má-fé do legislador, o § 1º da Lei 10.438/2002 não criou nova regra quanto à obrigação da concessionária pelo ônus necessário para o atendimento de seus consumidores. Pelo contrário, apesar de regra comezinha das relações fornecedor-consumidor, garantiu o que já estava positivado.

Não afastando, agora, a má-fé do legislador, por que a ANEEL, evitando interpretações dúbias e prejudiciais ao consumidor, ao introduzir o artigo 18-A na Resolução 223, não estabeleceu que até a publicação de tal regulamentação mantivessem as regras vigentes? O artigo 10 dos Atos das Disposições Constitucionais Transitórias é exemplo maior de como o legislador, quando quer, protege o hiposuficiente.

Ao intérprete restam duas interpretações: (a) ou o legislador apenas pretendeu ratificar o que já estava positivado, criando apenas uma possibilidade de que por regulamentação, criassem condições para o ressarcimento, a exemplo de parcelamentos, compensações, etc., ou, (b) veladamente, usou de má-fé ao acrescer a necessidade de regulamentação como condição para atendimento sem ônus para o consumidor.

Admitida a primeira hipótese, é de se reconhecer a interpretação equivocada das concessionárias de energia, e estas, não pairam dúvidas, estão obrigadas a ressarcir os consumidores pelos investimentos necessários.

Admitida a má-fé do legislador, estar-se diante de uma afronta aos princípios constitucionais de proteção ao cidadão e ao consumidor. Sobejando aos consumidores o direito ao ressarcimento.

A TUTELA DO CONSUMIDOR

O ordenamento jurídico brasileiro tutela as relações de consumo em normas constitucionais e infraconstitucionais. Este edifício está construído a partir da harmonização, dentre outros princípios, das normas contidas no inciso XXXII[8] do artigo 5º e artigo 170[9], ambos da Constituição Federal. Destas regras e princípios estabeleceu-se o Código de Defesa do Consumidor com todo seu arcabouço protetivo das relações consumeristas.

Como se sabe, o sistema jurídico brasileiros, no dizer de Rizzato Nunes[10], é interpretável a partir da idéia de sistema hierárquico. Qualquer exame ou acatamento de norma infraconstitucional deve iniciar pela adequação desta à norma máxima.

O Código de Defesa do Consumidor, em consonância com a Lei Maior, logo no seu artigo 4º, explicita seus princípios basilares tendo por objetivo o atendimento das necessidades dos consumidores, o respeito à sua dignidade, a proteção de seus interesses econômicos, bem como a transparência e harmonia das relações de consumo.

Lista como princípios, além de outros, o reconhecimento da vulnerabilidade do consumidor no mercado, a presença do Estado, mesmo por iniciativa direta, no sentido de proteger efetivamente o consumidor, harmonizando os interesses das relações de consumo e a compatibilização da sua proteção com a necessidade do desenvolvimento econômico, de modo a viabilizar os princípios nos quais se funda a ordem econômica (art. 170, da Constituição Federal), sempre com base na boa-fé e equilíbrio nas relações entre consumidores e fornecedores.

O Código de Defesa do Consumidor compõe um sistema autônomo dentro do quadro constitucional. Dir-se-á um subsistema próprio inserido no sistema constitucional brasileiro. Assim posto, conforme Rizzato Nunes, “de um lado as regras do CDC estão logicamente submetidas aos parâmetros normativos da Carta Magna, e, de outro, todas as demais normas do sistema somente terão incidência nas relações de consumo se e quando houver lacuna no sistema consumerista. Caso não haja, não há por que nem como pensar em aplicar outra lei diversa da n. 8.078. O CDC, como sistema próprio que é, comporta, assim, que o intérprete lance mão de seus instrumentos de trabalho a partir e tendo em vista os princípios e regras que estão nele estabelecidos e que interagem entre si. O uso da técnica de interpretação lógico-sistemática é fundamental para o entendimento das normas do CDC, tanto como a de base teleológica, que permitirá entender seus princípios e finalidades[11]”.

Desta forma, qualquer norma inferior que afronte os princípios de proteção ao consumidor carece de constitucionalidade se contraria a Constituição, e de legalidade se se contrapõe ao Código de Defesa do Consumidor.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Assim entendido, inequívoco se admitir que os fatos, alhures narrados, subsumem-se às normas constitucionais e legais de proteção das pessoas e mais especificamente do consumidor. Também, que as normas legais e administrativas tendentes a mitigar ou afastar esses princípios e direitos afrontam a Lei Maior, não estando, portanto, sujeitas ao cumprimento.

Portanto, não há que se falar da inexistência de obrigação das concessionárias de energia elétrica de restituir aos consumidores o investimento por eles executado na ampliação de suas redes de distribuição e depois transferido para o patrimônio das próprias distribuidoras de energia.

Em situações como a aqui trazida, o consumidor deve buscar a tutela do judiciário para fazer valer seus direitos de ser atendido por um serviço público e essencial sem ter que arcar com os investimentos necessários.
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(*) Advogado em Natal. Pós-Graduado em Finanças Corporativas pela FGV, em Direito Processual Civil pela UNP e em Direito Tributário pela FARN. Autor de “Processo Tributário - Ação Revisional - Controle de constitucionalidade: conflitos entre os efeitos das decisões em juízo abstrato e em juízo concreto” in Prática Jurídica nº 53 e de “A atual discriminação de rendas tributárias e os tributos federais: novos paradigmas” in Revista de Direito tributário da APET nº 8.

[2] Departamento Nacional de Águas e Energia Elétrica - DNAEE

[3] Art. 3º.

[4] Art. 4º

[5] Art. 18. A Portaria DNAEE nº 5, de 11 de janeiro de 1990, fica revogada, em face da participação financeira do consumidor ter sido extinta conforme o art. 14 da Lei nº 10.438, de 2002 (grifos apostos).

[6] Art. 17. Ficam incluídos no art. 3º da Resolução ANEEL nº 456, de 2000, os §§ 1º e 2º com a seguinte redação:

Art. 3º ...........................................................................................

§ 1º O prazo para atendimento, sem ônus de qualquer espécie para o interessado, deverá obedecer, quando for o caso, ao Plano de Universalização, aprovado pela ANEEL;

[7] Os incisos I e II define áreas para os grupos B, sujeitas a regras da Universalização.

[8] Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: (...); XXXII - o Estado promoverá, na forma da lei, a defesa do consumidor;(...).

[9] Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios: (...); IV - livre concorrência; V - defesa do consumidor; (...)

[10] Comentários ao código de defesa do consumidor. São Paulo: Saraiva, 2005. p. 11.

[11] Comentários ao código de defesa do consumidor. São Paulo: Saraiva, 2005. p. 11.

Um comentário:

Unknown disse...

Prezado Sr. Sávio, li sua matéria e achei bem interessante... ainda mais que surgiu um problema parecido com esse no meu escritório... gostaria de mais detalhes sobre as Ações judiciais para restituição destes valores... aguardo o seu contato...
Att

Danuza Ribas
e-mail: danuzaribas@yahoo.com.br