domingo, 2 de novembro de 2008

C - Roteiro para um conto.



Pra Salete que, como Emília Pequena, foi acolhida por Júlia.


Logo cedo, tratou de arrumar a casa que em pouco deixaria de ser o seu lar. Nunca admitia o mínimo vestígio de desorganização. Casa modesta, de poucos móveis e utensílios, mas, todos em seus devidos lugares. A limpeza do chão, de tijolo batido, dava inveja.

Roupas lavadas e passadas, panelas de ferro reluzidas pela areia do rio e as colheres com o falso dourado das colheres de arame. Tudo, tudo limpinho.

Terminada a limpeza, banhou-se no açude, excedeu no perfume, penteou os longos cabelos.

Para se envaidecer, deu uma última olhada no espelho. A imagem de dor escondia os vestígios do buço que herdara. Talvez a única parte de seu corpo que a desgostava.

Em pouco, Emília não seria mais Pequena.

Emília, ou melhor, Emilia Pequena, era filha de Donato e, desde a morte de sua mãe, fora criada por seus tios, Júlia, consangüínea, e Manuel de Fontes, afim. Tinham-na como filha, em troca, chamava-os por mãe e pai. Emília era Pequena pra diferençar da outra Emília, sua prima e filha legítima de seus pais adotivos.

Feito moça, Emilia Pequena casou com Chico Soares, jovem bonito e trabalhador. Depois se soube também exímio na arte do galanteio.

Logo depois do casamento, Emilia Pequena descobriu que Chico mantinha um romance com Tereza, filha de Chico Turbano. Esta duplicidade de amores deu azo às primeiras discórdias do casal. Embora de índole cordial, Emília não aceitou aquela situação. Apesar das advertências dos sogros-tios-pais, Chico insistia em manter a aventura amorosa.

Nem o nascimento dos dois filhos, mortos de forma prematura, mudou a relação. O ápice foi atingido quando Chico resolveu trazer Tereza pra morarem juntos. Emilia se valeu do tio-pai para impedir tal desvario, recebendo a promessa de que, enquanto vivo Chico não teria coragem suficiente para cumprir o dito.

Apesar dos conselhos para largar seu marido, Emilia não aquiesceu. Difícil de se conceber naqueles anos quarenta numa Zé da Penha que ainda era Mata.

Ademais, Chico sabia que Manuel de Fontes, além de não cevar nó na língua, tinha pulso e coragem pra impedir seus planos. Nos dias que se seguiram, como por vingança, Chico passou também a maltratar Emília. Não se soube de agressões físicas, mas, de palavrões e outras humilhações.

Emília Pequena não suportou viver sob o signo da traição e resolveu deixar Chico livre pra sua amante.

Pôs em ordem toda a casa, seu lar infeliz. Subiu em uma cadeira, prendeu a corda em um caibro, amarrou-a sobre o pescoço, deu um leve puxão pra certeza do nó e empurrou com os pés o assento.

Quando a encontraram, já havia algumas horas.

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